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A CONSTITUIÇÃO E O
DIREITO INTERTEMPORAL
Pretendemos,
neste pequeno texto, abordar os efeitos temporais das leis em conformidade com
o peculiar ordenamento jurídico brasileiro, demonstrando, assim, as
modificações constitucionais referentes ao tema, bem como as alterações nas
sucessivas Leis de Introdução ao Código Civil.
Toda lei tem sua força em determinado
local e tempo. Em regra, uma norma tem vigência até que outra a revogue. É,
pois, neste ponto que surge o Direito Intertemporal, direito transitório ou
conflito de leis no tempo. Seja qual for a denominação da matéria, o inevitável
é que neste campo do direito não há uma única trilha seguida. A sucessão de
leis no tempo traz diversos problemas para a aplicação do Direito, porquanto a
norma anterior incidiu sobre determinadas situações e, por outro lado, a lei
revogadora está pronta para incidir.
No conflito intertemporal, com
efeito, entram em choque dois dogmas jurídicos: de um lado a segurança das
relações constituídas sobre a égide da norma revogada que a novatio legis deve
tentar preservar; por outro, a nova lei traz, em princípio, a evolução das
necessidades sociais, o progresso, a visão moderna. Assim, determinados
doutrinadores e a própria jurisprudência ora pendem para um lado, ora primam
pelo outro. A solução, contudo, deve ser aristotélica, buscando um meio-termo
para que não haja nem o apego retrógrado ao passado, tampouco o desfazimento do
que já foi constituído.
Assim, determinados doutrinadores e
a própria jurisprudência ora pendem para um lado, ora primam pelo outro. A
solução, contudo, deve ser aristotélica, buscando um meio-termo para que não
haja nem o apego retrógrado ao passado, tampouco o desfazimento do que já foi
constituído. Retro significa "para trás"; logo, retroagir seria o
agir no passado. Todavia, embora entendamos que assim seja, a doutrina
utiliza-o em outro significado. Para esta corrente, retroagir é, pois, atingir
determinados direitos já constituídos pela lei anterior, muito embora a atuação
da nova lei se dê a partir de sua entrada em vigor. Retroagir, neste caso,
seria o agir da lei nova, seja no passado, no presente ou no futuro,
infringindo determinados direitos subjetivos.
Concorre para
isto a própria classificação de "graus de retroatividade" feita pela
doutrina e, diversas vezes, utilizada pela jurisprudência. Diz-se de grau
máximo quando a lei nova extingue situação anterior ao período de sua vigência,
restituindo o status quo ante. A retroatividade dita de grau médio ocorre
quando, malgrado não deixe de restituir ao estado anterior, a nova lei atinge
efeitos destes atos, produzidos antes de sua entrada em vigor. Por fim, e aqui
está o problema, referem-se à retroatividade mínima quando a nova lei atinge
efeitos futuros de atos pendentes. Neste caso, porém, não há propriamente
retroatividade, mas sim eficácia imediata da lei.
Neste passo, há que se ressaltar os
dois enfoques da matéria: de um lado, há a projeção temporal da lei nova, que
pode ser retroativa ou irretroativa e, ainda, ter eficácia imediata; ao passo
que neste agir da lei, determinadas situações jurídicas devem permanecer
incólumes. Não se pode, contudo, esquecer que a Constituição Federal não proíbe
a aplicação retroativa da lei, preservando, porém, o ato jurídico perfeito, o
direito adquirido e a coisa julgada. É neste terreno movediço que se encontra
este trabalho.
Portanto, ao conceituar
retroatividade alguns autores não levam em consideração o efeito da própria
lei, mas sim o "aspecto temporal das realidades sobre as quais ela
incide". Assim, retroativa não seria a lei que "age no passado".
Ao passo que outros atentam-se para o aspecto temporal da própria norma
jurídica, entendendo, pois, conforme a etimologia da palavra. Já manifestamos o
entendimento de que esta segunda vertente é a mais sustentável. Destarte,
aplicaremos as regras expostas por José Eduardo Martins Cardoso, inspirado em
Gaetano Pace, que ao aferir sobre a retroatividade e a eficácia imediata da
nova lei, utiliza-se da estrutura lógica da norma jurídica. Com efeito,
adotando a corrente não-sancionista "a retroatividade de uma norma expressa
em lei pode se dar tanto quanto à sua hipótese, como quanto a seu
preceito". Para ser retroativa, basta que isoladamente ou em conjunto, a
hipótese ou o preceito valorem o elemento fático do passado. Por conseqüência,
ocorre efeito imediato da lei nova quando "nem a sua hipótese, nem o seu
preceito projetam efeitos pretéritos". Assim, no que se refere à aplicação
imediata ex hipótese, explica o autor:
"não importará se o que é
exigido para a realização da hipótese normativa teve faticamente nascimento ou
origem sob a vigência da lei velha. Basta apenas que a hipótese se faça
preencher por uma dada realidade fático-jurídica coincidente na sua existência
por inteiro com o momento temporal que entra em vigor a lei nova, para que a
sua incidência seja qualificada como imediata."
"Difere assim o efeito
imediato ex hipótese da retroatividade ex hipótese não pelo fato de que a
conditio juris descrita pode ter sua origem fática remontada ao passado, mas
porque no primeiro a lei só exige a sua existência no presente, enquanto que na
segunda a norma exige valorativamente a sua configuração existencial no
passado."
A norma cuja
hipótese valore fatos passados será retroativa, mesmo que o preceito tenha efeito
imediato. Para ter efeitos imediatos, então, tanto a hipótese quanto o preceito
devem atingir os fatos verificáveis, quanto a sua existência, no exato momento
da sua entrada em vigor. Resumidamente, poderíamos dizer que o fato jurídico em
que a nova lei irá incidir pode ter existência anterior a ela, porém se a
verificação deste fato, bem como a atuação desta norma, coincidir com sua
entrada em vigor, teremos eficácia imediata e não efeito retro-operante..
Retroatividade, portanto, refere-se
ao "agir no passado", ocorre, pois, quando a norma legal
"valorativamente invade e altera o período de tempo anterior ao início de
sua própria vigência, seja para descrever na sua hipótese, isoladamente ou não,
elemento fático realizado no passado, seja por definir preceito que implique em
modificação jurídica de realidade pretérita". Ao passo que, diz-se
irretroativa a norma que não age no passado.
Não se pode confundir proteção dos
direitos adquiridos, ato jurídico perfeito e coisa julgada com a aplicação
temporal da norma. Assim, pensamos uma hipotética norma temporária no novo
Código: "A partir da vigência deste código, serão considerados inválidos
todos os atos contrários a suas normas". O suporte fático da norma será
valorado a partir da entrada em vigor da nova lei, não há valoração do passado.
O fato de já existir o ato antes do Código é irrelevante, pois não está sendo
valorado. Há, portanto, eficácia imediata. É claro, porém, que esta norma não
poderia ser aplicada, não por ser retroativa, pois não o é, mas pela flagrante
ofensa ao ato jurídico perfeito. Imaginemos outro exemplo: "aqueles que
casaram no ano anterior a vigência deste código, terão como regime de bens o da
comunhão parcial". Neste caso, a atuação da lei está sendo realizada no
passado (um ano antes da vigência), configurando a retroatividade. Efeito
imediato, portanto, consiste na aplicação da lei nova a partir da sua entrada
em vigor e não pode confunde com a retroatividade.
A ultra-atividade, por sua vez, refere-se
à eficácia da lei revogada, embora sem vigência. Quando ocorrer a sobrevivência
da lei velha, "implicará, normalmente, a exclusão dos efeitos imediatos e
futuros da lei em vigor, no que tange particularmente a situações ou relações
em curso no momento da alteração legislativa".
Neste vaivém das normas jurídicas,
o direito adquirido, ato jurídico perfeito e a coisa julgada permanecem
incólumes.
Portanto, há que se ter sempre a
ressalva de que, muitas vezes, a utilização do termo "retroatividade"
é empregada no sentido de ofensa àqueles três institutos, e não como efeito
temporal da lei.
No Brasil, a tradição é o da
constitucionalidade do respeito ao direito adquirido. Assim já era na
constituição de 1824, em que pese não houvesse leis nacionais, porquanto as
leis vigentes eram portuguesas. Esta situação permaneceu inalterável na
primeira constituição republicana, no ano de 1891.
Foi neste período, que surgiu a
doutrina nacional sobre direito intertemporal, sendo muitos autores no sentido
de não atribuir à irretroatividade da lei, conforme literalmente estipulado na
constituição, o caráter absoluto que possa parecer. Dentre os estimados
doutrinadores, podemos citar Rui Barbosa, Teixeira Freitas e Reinaldo Porchat.
Importante acontecimento neste
período, foi a entrada em vigor do primeiro Código Civil brasileiro
("Código Beviláqua"), bem como da antiga Lei de Introdução (Lei nº
3.017/16), marcando, assim, a história do direito civil, bem como do direito
intertemporal. A antiga LICC disciplinava no art. 3º que: "a lei não
prejudicará, em caso algum, o direito adquirido, o acto jurídico perfeito, ou a
coisa julgada". Nos parágrafos seguintes, conceituava estes institutos.
Segundo Cardozo, "o seu texto foi responsável pela afirmação legislativa
da regra do respeito ao direito adquirido entre nós".
Quando da promulgação da
Constituição de 1934 a redação do dispositivo referente ao direito
intertemporal, sofreu modificações. O legislador constituinte não se manifestou
sobre retroatividade ou irretroatividade da lei nova, somente deixando a salvo
o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.
Em 1937, com o golpe do Estado
Novo, Getúlio Vargas outorgou a terceira constituição republicana, a chamada
"Polaca". E foi neste momento, também, que surgiu uma inovadora e
provisória etapa do direito intertemporal no Brasil. Com efeito, a Carta Magna,
rompendo a tradição, silenciou a respeito da retroatividade da lei, transpondo
à lei ordinária esta tarefa. Assim, aplicando o modelo europeu, neste período
nada impedia que o legislador desse à lei efeitos que atingissem direitos já
adquiridos. Todavia, a regra do art. 3º da primitiva Lei de Introdução,
permanecia em vigor, estando o juiz, portanto, obrigado a observá-la.
Foi sob vigência desta omissa
constituição, que veio à luz a nova e atual Lei de Introdução ao Código Civil
(Dec-Lei nº 4.657/42). No art. 6º deste Decreto-Lei, que posteriormente fora
alterado, dispunha que "a lei em vigor terá efeito imediato e geral. Não
atingirá, entretanto, salvo disposição em contrário, as situações jurídicas
definitivamente constituídas e a execução do acto jurídico perfeito".
Conforme Caio Mario,
"abandonou o legislador a doutrina clássica do direito adquirido, para
encarar, em profissão de fé objetivista, a situação jurídica, tal como a teoria de Roubier". José Eduardo
Martins Cardozo, afirma que "numa nova e drástica alteração do Direito
Intertemporal Brasileiro buscava o
legislador varrer do nosso direito a denominada teoria do ‘direito
adquirido’". No mesmo sentido e de forma mais eloqüente, Limongi França
desabafa: "graças a esse rompimento com as nossas raízes, no que tange à
matéria, instaurou-se entre nos verdadeira balbúrdia" .
A omissão constitucional, somada à
possibilidade de o legislador dar à lei efeitos que atingissem direito já
adquiridos, sem dúvida, constituía verdadeira insegurança nas relações
jurídicas. Todavia, a balbúrdia não foi tão intensa como possa presumir-se,
mormente por dois motivos: primeiro, pela boa técnica utilizada pelo legislador
que, pela primeira vez, aplicando a teoria de Roubier, diferencia os efeitos
pretéritos da nova lei, dos efeitos imediatos desta, "deixando nitidamente
em caráter de exceção, tanto a sua eventual retroatividade, como as hipóteses
de sobrevivência da lei velha"; o segundo e principal fator que abrandou
os efeitos da nova LICC, foi o curto espaço de tempo entre sua entrada em vigor
(1942) e a nova e redemocratizadora Constituição Federal de 1946 que, voltando
à tradição, elevou ao nível constitucional a proteção do direito adquirido. De
forma intocável, assevera Caio Mario da Silva Pereira:
"Acontece, entretanto, que a
jurisprudência não conseguiu desvencilhar-se dos princípios assentados, e não
obstante o direito positivo ter adotado fundamento diferente, permaneceu fiel
aos velhos conceitos, procurando dar solução aos conflitos intertemporais de
leis com aplicação de norma de cunho objetivista, porém jogando com as noções
subjetivas de direito adquirido e expectativa de direito. Tendo formado o seu
espírito sob a inspiração das teorias tradicionais, os juízes não conseguiram
desvencilhar-se de seus cânones, e não puderam afeiçoar-se às concepções
modernas".
Com a nova Carta
Política, a constitucionalidade do art. 6º da Lei de Introdução ficou
questionada. Mas esta discussão foi efêmera em virtude da nova redação deste
artigo, dada pela Lei nº 3.238/57, que hodiernamente regula, em nível infraconstitucional,
o direito intertemporal brasileiro. A redação atual do art. 6º, conclui-se,
compilou a antiga tradição da proteção do direito adquirido, ato jurídico
perfeito e coisa julgada, com a afirmação expressa de que a novel lei terá
efeito imediato e geral.
Em que pese a situação política
conturbada, a Reforma de 1967, assim como EC nº 1 de 1969, não produziram
quaisquer inovações no tocante ao Direito Intertemporal.
O mesmo princípio, e nos mesmos
termos, subsiste na atual Constituição Federal, no seu art. 5º, inciso XXXVI.
Portanto, ao contrário da maioria
dos ordenamentos jurídicos europeus, no Brasil o princípio da irretroatividade,
a exceção da Constituição de 1937, esteve inserido em nível constitucional,
vinculando, portanto, o legislador, num primeiro momento, bem como juiz, quando
da aplicação da lei.
Naqueles sistemas, estando à
obrigatoriedade da não retroatividade vinculada somente ao juiz, o legislador
tem a faculdade de elaborar leis retroativas, quando entender que seja justo,
independente da violação que traga. Nestes casos, pois, a irretroatividade tem
a característica de política legislativa, donde "o juiz não pode atribuir
efeito retroativo às disposições novas, a não ser que o legislador tenha
claramente manifestado sua vontade neste sentido".
Assim, pode-se afirmar que nosso
sistema é mais rígido, uma vez que não pode o legislador criar norma que atinja
algum direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, assim como
ao juiz, nestes casos, dar-lhe interpretação que viole a proteção
constitucional. Dessa forma, uma vez havendo lei que viole o texto
constitucional, cabe ao Judiciário negar-lhe vigência.
Importante alerta faz Vicente Raó,
ao ressaltar que incumbe "a todo poder competente para editar normas
jurídicas obrigatórias, pois a todas estas normas, sejam quais foram (leis,
decretos, regulamentos etc.), o mesmo se aplica". De tal modo que este
princípio vincula também às autoridades administrativas.
Atualmente não há na disposição
constitucional qualquer referência expressa à retroatividade ou
irretroatividade da lei. Esta omissão leva os doutrinadores a discussão de qual
seja o princípio atualmente vigente, questão que não se restringe somente ao
meio acadêmico, tendo imensos efeitos práticos.
Com efeito, ao adotar o princípio
da retroatividade, qualquer lei, implicitamente ou não, atingiria fatos
passados, salvo, é claro, se viesse a prejudicar direito adquirido, ato jurídico
perfeito e a coisa julgada. Assim como, nestes casos, a retroatividade não
vingaria somente quando estivesse disposição normativa expressa em contrário.
Por outro lado, entendendo como princípio vigente o da irretroatividade, a lei
nova somente poderia atingir fatos passados, por disposição expressa neste
sentido, ressalvado sempre aqueles três institutos. O que resta indiscutível é
que a lei nova é irretroativa quanto a possibilidade de atingir os direitos
adquiridos, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.
Há que se
ressaltar, também, que seja qual for a regra no direito pátrio, não há como
adotar um princípio absoluto de que a lei é totalmente irretroativa ou é
completamente retroativa.
Ante a omissão constitucional
quanto ao princípio adotado para a solução dos conflitos intertemporais das
normas jurídicas, devemos nos reportar para o que diz a lei infraconstitucional
sobre o assunto. Assim, a LICC, no art. 6º, afirma que a lei terá "efeito
imediato e geral", o que não dispõe no texto constitucional. Ora, se a lei
tem efeitos a partir da sua entrada em vigor, isto é, efeito imediato, a
conclusão a que se chega é que o princípio adotado no direito brasileiro é o da
irretroatividade, o que não impede, excepcionalmente, que o legislador dê a
novatio legis efeito retroativo, desde que, é claro, não atinja aqueles três
institutos mencionados tanto na norma constitucional como na Lei de Introdução.
CAJAZEIRAS-PB EM 014/03/2012
BOA APRENDIZAGEM!
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